Arquitetura Hostil: Um Desafio à Espiritualidade e à Inclusão

Projetos que vetam intervenções antimorador de rua ganham força no país -  08/01/2022 - Cotidiano - Folha

A arquitetura, como disciplina, sempre foi muito mais do que a construção de edifícios físicos. Ela é capaz de moldar e refletir a sociedade em seus diversos aspectos, sejam eles culturais, políticos, sociais ou espirituais. Um conceito que tem emergido nas discussões contemporâneas é o da “Arquitetura Hostil”, que vai além das paredes e estruturas, tocando questões profundas e complexas. Nesse contexto, a relação entre Arquitetura Sacra e Arquitetura Hostil se torna particularmente interessante, pois confronta a essência espiritual dos espaços religiosos com as demandas de segurança e acolhimento.

O Prof. Almir José Neto, arquiteto e ministrante do curso de extensão em Arquitetura Sacra no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), compartilhou suas reflexões sobre a Arquitetura Hostil em uma entrevista exclusiva. Ele destacou que a Arquitetura Sacra não deve estar desconectada das preocupações sociais e políticas, e sim se inspirar nas palavras do Papa Francisco, que exorta à integração e ao acolhimento dos diferentes. Citando a exortação apostólica “Evangelii Gaudium“, o Prof. Almir ressaltou que as igrejas não podem comprometer a mensagem de acolhimento e espiritualidade ao adotar medidas de segurança excessivas.

ITESP: Sabemos que a Arquitetura Hostil é um conceito que transcende o espaço físico, tocando questões sociais, políticas e espirituais. Como a Arquitetura Sacra pode responder a essas dimensões complexas, especialmente em espaços religiosos onde a mensagem de acolhimento e espiritualidade é essencial?

Prof. Almir José Neto: A Arquitetura Sacra pode responder a estas questões sendo atenta ao que nos convida e pede a própria Igreja na pessoa do Sumo Pontífice, o amado Papa Francisco. Em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, de 2013, ao tratar do anúncio do evangelho no mundo atual e apelar, como já evidencia o título da exortação, para que ele seja feita com alegria, Sua Santidade, ao falar sobre o cuidado da fragilidade do outro, vai trazer uma consideração urbano-arquitetônica muito interessante. Vale transcrever aqui uma parte deste texto que é, inclusive, mencionado em nosso módulo 01 do curso de Arquitetura Sacra: “Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetônico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!”

Essas são palavras de nosso Papa! Agora, como podemos ter o Sumo Pontífice exaltando essa característica tão especial para o projeto de uma cidade, para o projeto de qualquer arquitetura secular, mas estarmos fazendo exatamente o contrário em nossos espaços celebrativos? É, no mínimo, incondizente com o próprio SER IGREJA a que somos convidados. A igreja (templo) sempre vai refletir a Igreja (comunidade). Uma igreja trancada entre grades em nome da segurança é uma Igreja trancada em si mesmo e que pouco se confia ao Senhor, sendo um rebanho obediente numa Igreja em saída!

ITESP: A relação entre a Arquitetura Sacra e a Arquitetura Hostil pode levantar questionamentos sobre a interseção entre segurança e espiritualidade. Como você enxerga a possibilidade de criar espaços que protejam as comunidades sem comprometer a atmosfera sagrada e de acolhimento que as igrejas buscam proporcionar?

Prof. Almir José Neto: Vale começarmos essa resposta com uma outra pergunta: “Que tipo de segurança, buscamos?” E, permitam-me trazer também aqui versos de uma música lançada na virada do último século, mais precisamente em 1999, que tem seus versos ainda bem atuais e que se encaixam primorosamente por aqui: “As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que ‘tá nessa prisão” (música: Minha Alma; Artista: O Rappa). Em nome da segurança fechamos nossas igrejas com grades horrendas; criamos pontas, espetos e farpas em nossos muros; cercamos nossos átrios e deixamos de ser acolhedores! São respostas necessárias às violências de nossos dias, sem dúvidas, mas eu pergunto: com que sensibilidade nós estamos encontrando estas necessárias respostas? Gostaria de convidar a todos à busca de soluções acolhedoras e criativas para essas necessidades. A criar soluções que sejam muito mais que paliativas. Uma comunidade que, por exemplo, simplesmente põe grade em seus jardins para que irmãos em situação de rua não faça morada por entre seu paisagismo bem cuidado para prefigurar o paraíso celeste (essa é a grande mistagogia e beleza de se usar jardins à frente de nossas igrejas) é uma comunidade que está mais morta do que uma florzinha daquela que comumente chamamos de “sempre viva”, costumeiramente espetadas em cactos para deixá-los mais “alegres”, sabe?! Pois bem, comunidades que fazem isso são como “sempre vivas”, fingem uma beleza que não existe. É uma beleza forçada, fora de seu lugar de essência, morta por dentro e, com isso, uma “beleza” na verdade não bela. Resumindo minha reflexão e evidenciando minha resposta para ser pontual à pergunta: a solução para criação de espaços que protejam as comunidades sem comprometer a atmosfera sagrada e de acolhimento de nossos templos está em três pontos (que são o segredo de qualquer bom projeto arquitetônico na minha opinião): sensibilidade, empatia e criatividade!

ITESP: No contexto religioso, como a Teologia pode se integrar ao debate sobre Arquitetura Hostil? Como as reflexões teológicas podem contribuir para a compreensão e a abordagem desse tema, levando em consideração a mensagem de inclusão, amor ao próximo e justiça social que muitas religiões pregam?

Prof. Almir José Neto: Já em algumas décadas, sobretudo para nossa Igreja Latino Americana, o pensamento teológico ficou muito seccionado em dois grupos que muitos insistem em fazê-los distintos e antagônicos. Neles, num primeiro grupo as questões sociais tendem a suprimir as espirituais, sendo dadas grande importância às defesas e lutas pelos pobres, marginalizados e sofredores; no segundo, a preocupação com a espiritualidade, o zelo pela liturgia, pelos dogmas, pela beleza da oração e do espaço celebrativo vão ser colocados como questões que realmente importam, “marginalizando” a função social da Igreja como resposta a radicalidades encontradas na primeira vertente que aqui apresento. Isso fica muito evidente quando ouvimos a alcunha de que “não se pode colocar o pobre no lugar de Cristo”. E é verdade! Contudo, para mim, muito humildemente como um arquiteto sacro, é nessa cisão que mora o problema. Essas vertentes não deveriam ser antagônicas e distintas, porque ontologicamente não o são. O pobre, o marginalizado, o que sofre não pode estar no lugar de Cristo porque o que precisamos é ver neles o próprio Cristo. “É a mim que fizestes” (Mt 25,40), essa é a garantia que o Senhor nos dá! Não podemos separar espiritualidade de questões sociais; teologia de inclusão; espaços oracionais de espaços acolhedores, da mesmíssima forma que não podemos separar a fé das obras. Porque, como São Tiago nos ensina, “a fé sem obras é uma fé morta” (Tg 2, 17s). Assim sendo, penso eu, que uma teologia que não se volta a ver no que sofre o rosto de Cristo sofredor, uma arquitetura sacra que repele ao invés de acolher aqueles que mais precisam, são igualmente mortas e, por produzi-las, um dia corremos o risco de ouvir do Senhor: “Apartai-vos de mim!”(Mt 25, 41)

Na esfera teológica, a discussão sobre Arquitetura Hostil pode abrir um diálogo importante. A teologia não deve estar separada das questões sociais, políticas e espaciais. O Prof. Almir observa que a Teologia pode contribuir para o debate ao promover a compreensão da mensagem de inclusão, amor ao próximo e justiça social que muitas religiões pregam. A teologia nos lembra que o pobre, o marginalizado e o sofredor são rostos de Cristo, e é nessa compreensão que se encontra a verdadeira espiritualidade.

A Arquitetura Hostil é um tema que desafia os fundamentos da arquitetura sacra e nos convida a repensar como nossos espaços religiosos podem ser verdadeiramente acolhedores, seguros e espirituais. A contribuição do Prof. Almir José Neto oferece pontos valiosos sobre como enfrentar esse desafio, integrando sensibilidade, empatia e criatividade, e alinhando-se com as mensagens de inclusão e amor presentes nas tradições religiosas.

A exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco está disponível para venda pela editora Paulus, uma das parceiras aqui do ITESP.

Por: Arison Lopes, Comunicação Institucional ITESP

Imagem: Comunicação ITESP.

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