Anistia e democracia: entre a memória silenciada e a urgência da educação crítica

Anistia e democracia: entre a memória silenciada e a urgência da educação crítica
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Nos últimos meses, o debate em torno da anistia aos envolvidos nos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023 reacendeu tensões históricas e institucionais no Brasil. Grupos políticos da extrema direita têm pressionado o Congresso e a opinião pública para que os autores das invasões aos Três Poderes sejam perdoados em nome da “pacificação nacional”. Contudo, o que parece um gesto de reconciliação pode, na verdade, abrir caminho para o enfraquecimento da democracia — e para o reapagamento de crimes graves contra o Estado de Direito.

O Brasil já trilhou esse caminho antes. Em 1979, ainda sob o regime militar, foi promulgada a chamada Lei da Anistia, que, embora atendesse às demandas por justiça de perseguidos políticos e exilados, também concedeu perdão aos agentes do Estado responsáveis por prisões ilegais, torturas e assassinatos. Essa ambiguidade histórica permanece como uma ferida aberta na memória nacional: nenhum torturador foi julgado ou condenado, e a ditadura nunca foi plenamente responsabilizada por seus crimes.

É justamente esse modelo de “anistia sem justiça” que volta a assombrar o país. Ao se discutir a possibilidade de perdoar os golpistas de 2023, corre-se o risco de repetir a fórmula de 1979 — normalizando a impunidade e fragilizando as bases democráticas. A história, quando ignorada, tende a se repetir com novos protagonistas e consequências ainda mais complexas.

Para aprofundar essa discussão, o Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP) conversou com o professor Leonardo Laguna Betfuer, doutor em Educação pela UNIFESP e pesquisador nas áreas de História da Educação no Brasil e Estados Unidos e História da Educação Afro-americana. Segundo ele, a anistia mal aplicada representa não apenas o apagamento das vítimas, mas a distorção da verdade histórica. “A ambiguidade da Lei de 1979 gerou uma cultura de silêncio e impunidade, limitando o debate sobre direitos humanos e prejudicando a formação de uma consciência democrática sólida”, analisa.

Na visão de Betfuer, os jovens brasileiros cresceram em um ambiente onde os crimes da ditadura foram relativizados ou sequer mencionados. Isso impacta diretamente sua capacidade crítica diante de práticas autoritárias atuais. “A ausência de responsabilização cria um precedente perigoso, sugerindo que a violação da ordem democrática pode ser aceita e perdoada”, afirma.

O professor também destaca o papel essencial da educação no enfrentamento desse cenário. O ensino de História deve ser uma ferramenta ativa de resistência ao negacionismo, promovendo pensamento crítico e fortalecendo a memória coletiva. “Precisamos oferecer aos alunos ferramentas para identificar e rejeitar narrativas que deturpam os fatos, sobretudo em tempos de desinformação nas redes sociais.

Acompanhe a entrevista na íntegra:

ITESP: Professor Leonardo, muitos estudiosos apontam que a Lei da Anistia de 1979 teve um caráter ambíguo, ao perdoar tanto os perseguidos quanto os perseguidores do regime militar. Do ponto de vista histórico e educacional, que efeitos essa ambiguidade produziu na formação da consciência democrática no Brasil?

Leonardo Betfuer: A ambiguidade presente na Lei da Anistia de 1979 gerou, historicamente, uma cultura de impunidade e silêncio em relação às violações cometidas durante a ditadura militar. Educacionalmente, essa ambiguidade limitou o debate crítico sobre direitos humanos e democracia nas escolas, dificultando a plena compreensão histórica sobre o período e contribuindo para uma consciência democrática fragilizada, onde muitos jovens desconhecem ou minimizam a gravidade dos crimes cometidos.

ITESP: Em tempos de crescente revisionismo histórico e negacionismo, especialmente nas redes sociais, como o ensino de História pode atuar como ferramenta de resistência e construção da verdade histórica em torno da ditadura e da anistia?

Leonardo Betfuer: O ensino de História deve atuar como resistência por meio do desenvolvimento do pensamento crítico, incentivando a pesquisa em fontes confiáveis e promovendo debates abertos e fundamentados sobre fatos históricos. O educador precisa oferecer aos alunos ferramentas analíticas para que reconheçam e rejeitem narrativas negacionistas, reforçando uma memória histórica sólida e transparente sobre o período da ditadura e suas consequências.

ITESP: Tendo em vista sua experiência na pesquisa em Educação, você acredita que a ausência de responsabilização plena dos crimes da ditadura interfere no modo como os jovens hoje se relacionam com temas como autoritarismo, violência estatal e direitos civis?

Leonardo Betfuer: Sem dúvida. A falta de responsabilização plena dos crimes da ditadura cria um precedente perigoso, sugerindo implicitamente que violações graves podem permanecer impunes. Isso interfere diretamente na formação política e ética dos jovens, que podem passar a aceitar com maior naturalidade práticas autoritárias, violência estatal e o desrespeito aos direitos civis, diminuindo a capacidade crítica e vigilância necessária para preservar a democracia.

ITESP: Professor, diante dos recentes pedidos de anistia para os envolvidos nos ataques às instituições em 8 de janeiro de 2023, qual é o risco histórico e democrático de se recorrer novamente à anistia como forma de apaziguamento político? Podemos traçar paralelos com a anistia de 1979?

Leonardo Betfuer: O risco histórico e democrático reside em fortalecer novamente uma cultura de impunidade que desconsidera a gravidade dos ataques à democracia. Recorrer novamente à anistia como forma de apaziguamento reforçaria uma mensagem equivocada, de que a violação da ordem democrática é aceitável em determinadas circunstâncias. O paralelo com a anistia de 1979 é evidente, pois ambas as situações envolvem a tentativa de pacificação sem a devida responsabilização dos culpados, fragilizando assim as bases da democracia brasileira.

ITESP: Vivemos hoje uma espécie de ‘cegueira social’, onde uma parcela da população relativiza ou até apoia atentados contra a democracia. Na sua visão, de onde vem essa disposição em perdoar crimes políticos graves em nome de uma suposta pacificação nacional? A educação pode reverter esse cenário?

Leonardo Betfuer: Essa disposição surge, em grande medida, do desconhecimento histórico e da falta de uma formação cidadã sólida, que permita aos indivíduos compreenderem plenamente as consequências de atos contra a democracia. A educação pode, sim, reverter esse cenário, ao fortalecer o ensino crítico e humanista, que promova o compromisso ético com os valores democráticos e uma compreensão aprofundada sobre o significado e a importância das instituições e do Estado de Direito.

ITESP: A anistia, quando mal empregada, pode ser uma forma de silenciamento da verdade e das vítimas. Como você analisa o discurso atual que defende “esquecer para seguir em frente”, especialmente quando usado por setores que tentam minimizar os impactos dos atos golpistas e das violações institucionais?

Leonardo Betfuer: O discurso de “esquecer para seguir em frente” é profundamente problemático, pois promove um apagamento histórico que beneficia apenas os responsáveis por violações e crimes contra a democracia. Esse discurso impede que haja uma reflexão verdadeira sobre os erros cometidos, dificultando a prevenção de futuros abusos. É essencial resistir a essa narrativa, garantindo que a memória e a justiça prevaleçam, pois apenas assim é possível construir uma sociedade democrática consciente e resiliente.

Diante do atual contexto político e social brasileiro, revisitar o processo histórico da anistia não é apenas um exercício de memória, mas uma urgência democrática. Repetir erros do passado, como conceder perdão sem verdade, justiça ou responsabilização, pode comprometer seriamente o futuro da democracia no país. É preciso reconhecer que sem memória não há justiça, e sem justiça não há reconciliação verdadeira.

A entrevista com o Prof. Leonardo Laguna Betfuer nos convida a olhar criticamente para as tentativas de apagar os impactos de crimes políticos graves por meio de discursos aparentemente pacificadores. Mais do que nunca, a educação, especialmente o ensino de História e a formação teológica com responsabilidade ética, precisa assumir seu papel na construção de uma cidadania ativa, vigilante e comprometida com os valores democráticos.

O Brasil não pode mais se permitir esquecer para seguir em frente. É preciso lembrar, compreender, responsabilizar e educar — para, só então, avançar.

Por: Arison Lopes, Comunicação ITESP.

Imagem: Fellipe Sampaio/SCO/STF