Fé sem religião? Desafios pastorais e teológicos à luz do Censo 2022 – Uma reflexão a partir da Teologia e da realidade brasileira atual

O Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo IBGE no dia 6 de junho de 2025, revelou dados que devem ser lidos com atenção pelos que se dedicam ao estudo da Teologia e ao serviço pastoral da Igreja. A religião católica, que há décadas era professada por mais de 90% da população brasileira, hoje é assumida por 56,75% dos brasileiros. Em paralelo, o número de pessoas que se declaram “sem religião” aumentou para 9,28%, evidenciando uma tendência que já era percebida nas últimas décadas: o crescimento da espiritualidade autônoma, desvinculada das instituições religiosas tradicionais.
Esse fenômeno, que ocorre em diversas partes do mundo ocidental, exige da Teologia uma escuta qualificada e uma análise crítica e esperançosa. Como religioso redentorista e estudante de Teologia no ITESP, percebo nesse cenário não apenas uma crise institucional, mas também a manifestação de novas buscas espirituais, que demandam novos caminhos de evangelização, diálogo e presença eclesial.
A crise das mediações religiosas tradicionais
Uma das razões apontadas para esse deslocamento é o crescente questionamento das instituições religiosas. Escândalos morais, estruturas clericalizadas e posturas que não dialogam com a vida concreta das pessoas geram afastamento. Muitas vezes, a prática religiosa institucionalizada é percebida como distante, moralista ou indiferente às dores sociais.
No entanto, do ponto de vista teológico, é importante recordar que a mediação comunitária da fé, celebrada, vivida e anunciada, é parte constitutiva da Revelação (Cf. DV 8). O desafio é recuperar a credibilidade dessa mediação. Como Igreja, somos chamados a refletir criticamente sobre nossas estruturas eclesiológicas e a promover uma conversão pastoral que torne nossas comunidades sinais vivos do Reino de Deus (Cf. EG 27).
Espiritualidade líquida e religião à la carte
A sociedade contemporânea, marcada pela globalização, pela cultura digital e pelo pluralismo, favorece a construção de espiritualidades fragmentadas. Como indicam os dados do Censo, a queda do pertencimento formal não significa o desaparecimento da fé. Ao contrário, muitos brasileiros continuam a crer em Deus, mas buscam uma fé sem doutrina rígida, sem ritos obrigatórios e sem institucionalidade.
Zygmunt Bauman falava de uma “modernidade líquida”, e essa liquidez atinge também o campo religioso (BAUMAN, 2001). A espiritualidade torna-se subjetiva, imediata, marcada pelo consumo simbólico. Para nós, teólogos e agentes pastorais, o desafio é discernir, sem condenações apressadas, os sinais de autenticidade dessas buscas e o que nelas revela uma sede profunda de sentido, transcendência e comunhão.
Fé sem religião ou religião sem comunidade?
Um dado que não pode ser ignorado é que grande parte dos “sem religião” continuam a declarar fé em Deus ou em alguma forma de espiritualidade. O problema não está, necessariamente, na ausência de fé, mas na rejeição de formas institucionais que não respondem às angústias contemporâneas.
A Teologia é chamada a aprofundar a relação entre fé e eclesialidade. A pergunta que se impõe é: como testemunhar uma Igreja que seja sacramento do encontro com Deus, e não obstáculo? Como viver e anunciar uma fé que promova vínculos fraternos e gere pertença sem autoritarismo, sem fechamento e sem indiferentismo?
Um chamado à escuta, ao diálogo e à renovação
À luz do Vaticano II e do magistério recente, especialmente o do Papa Francisco, torna-se evidente que a resposta da Igreja não pode ser o medo nem a rigidez. É necessário assumir uma atitude de escuta pastoral, de diálogo com a cultura e de renovação profunda das estruturas e métodos pastorais (Cf. EG 49-60).
A fé cristã é, por essência, relacional e comunitária. No entanto, ela precisa ser apresentada com coerência, humildade e paixão. O afastamento de muitos não é apenas recusa da verdade evangélica, mas grito por uma Igreja que esteja mais próxima, mais autêntica, mais comprometida com a dignidade humana e com os pobres.
Os dados do Censo 2022 são, para nós que estudamos Teologia, não apenas um diagnóstico sociológico, mas um sinal teológico. Indicam que o Espírito continua a soprar, mesmo fora dos limites visíveis da instituição. O povo de Deus continua buscando Deus, ainda que fora das estruturas convencionais. Cabe à Teologia e à vida religiosa consagrada escutar esse clamor e oferecer respostas evangélicas, proféticas e compassivas.
No ambiente acadêmico do ITESP, somos constantemente provocados a unir reflexão e ação, tradição e profecia. Diante do fenômeno da fé sem religião, não podemos cair no reducionismo moral ou sociológico. Precisamos, com coragem e esperança, redescobrir a beleza da fé cristã, sua força comunitária e sua capacidade de responder aos anseios mais profundos da alma humana.
Por: Kaio Oliveira, 2º ano de teologia e Prof. Marcelo Furlin.
Imagem: Jessica Cândido/Agência IBGE Notícias