Quando a fé vira trincheira: a crítica teológica à apropriação de Jesus pela extrema direita

Quando a fé vira trincheira: a crítica teológica à apropriação de Jesus pela extrema direita
Imagem: Otto Schubert

Nos últimos anos, o Brasil e o mundo têm testemunhado um fenômeno inquietante: o uso recorrente do nome de Jesus e de símbolos cristãos por movimentos de extrema direita, especialmente em contextos políticos. Sob o manto de uma “fé verdadeira”, discursos autoritários, xenófobos, militaristas e excludentes vêm sendo legitimados, muitas vezes em nome da moral, da pátria e da religião. Mas o que há por trás dessa apropriação religiosa? E como ela se distancia – ou se opõe – aos fundamentos do Evangelho?

Em entrevista concedida ao ITESP, o professor Bruno Coelho, especialista em História da Igreja e docente do Instituto, propõe uma leitura crítica e teológica desse fenômeno. Para ele, é essencial distinguir o debate político legítimo — com sua pluralidade de ideias — do projeto autoritário da extrema direita, que instrumentaliza a fé cristã para fins de poder.

Acompanhe a entrevista na íntegra:

ITESP: Professor Bruno, observamos um uso crescente da figura de Jesus por movimentos de extrema direita, especialmente em discursos políticos no Brasil. Como o senhor analisa essa apropriação religiosa a partir da perspectiva dos evangelhos e da teologia cristã?

Bruno Coelho: Como ponto de partida, gostaria de fazer uma distinção entre posicionamentos dentro do campo político. Aristotelicamente, a política é a arte de governar a cidade (ou estado/nação, para os dias atuais). Evidentemente, o campo do político pressupõe o diverso e mesmo o contraditório, seja em discursos, seja em epistemologias de governança. Ou seja, o fazer política, dentro de regimes democráticos, inclui a arte do convencimento de que determinada maneira de governar as instituições públicas é a mais adequada para aquele momento. Logo, é intrínseco à política posicionamentos mais alinhados ao conservadorismo ou ao progressismo, por exemplo. Assim, em democracias saudáveis, tendências à esquerda, à direita ou mistas, são comuns e devem ter asseguradas sua devida legitimidade, pois, retratam a diversidade política presente na população em geral.

O fenômeno que você chama de extrema direita é fruto de uma série de fatores históricos que não convém uma análise aqui. Todavia, trata-se de uma postura reacionária e ressentida com políticas públicas que, em sua perspectiva, foram lesivas a certas camadas sociais em particular e mesmo para o país em geral. Logo, a extrema direita é uma apropriação de posições políticas mais alinhadas a pautas conservadoras, nacionalistas e de costumes, mas, elevadas ao radicalismo da exclusão/eliminação do diferente. Portanto, não possui um viés democrático, mas, evidente opção pelo totalitarismo, ditadura. Evidentemente, em nações com forte apelo religioso, também este viés foi apropriado por este movimento político.

Toda apropriação é ideológica e não totalitária. A apropriação da figura de Jesus pela extrema direita no Brasil é bem marcada: trata-se de um Jesus branco e triunfalista que conclama à “guerra santa”. Esta branquitude à brasileira quer fazer uma ponte com o passado europeu de um Brasil que jamais houve. O triunfalismo se embasa na teologia da prosperidade, muito em voga no cristianismo pentecostal brasileiro, tanto na versão evangélica, quanto na católica. O convite à “guerra santa” se desdobra em duas vertentes: a primeira diz respeito à participação dos fiéis na vida pública no apoio aos candidatos “religiosos”, ou seja, o voto é a arma contra os ímpios; a segunda expressa-se no messianismo político, isto é, na ascensão providencial de um líder carismático e “santo” que irá liderar o país de acordo com a vontade de Deus, eliminando a corrupção e o pecado e, justamente por isso, trará as bênçãos divinas para a nação.

Quando confrontado com a Teologia e os Evangelhos, tal apropriação não se sustenta. Afinal, o Jesus histórico foi um “judeu marginal”, visto como agitador das massas e condenado à execução infame. Ou seja, para a teologia dos contemporâneos de Jesus, ele foi justamente o modelo da maldição divina: não teve longevidade (morreu aos 33 anos de idade), não adquiriu ou construiu riqueza (até seu túmulo era de outrem) e não deixou descendência. Ademais, do ponto de vista político, seu messianismo não visava ao trono e nem à luta contra os romanos.

Por isso, embora com um verniz religioso, é preciso deixar claro que a extrema direita não se interessa pela religião em si, mas, é um projeto de poder político que instrumentaliza a tradição cristão em função de seus interesses. Evidentemente, há muitos crentes Brasil afora que compartilham essa visão das coisas. Contudo, o discurso da extrema direita junto ao povo brasileiro só prosperou porque, na grande maioria, nossa população possui um perfil mais conservador e preocupado com as pautas de costumes, preocupações compartilhadas pelas Igrejas cristãs.

ITESP: Os evangelhos retratam Jesus como alguém profundamente comprometido com os pobres, marginalizados e excluídos. Como essa dimensão social da fé cristã entra em conflito com as pautas da extrema direita, que muitas vezes se opõem a políticas públicas inclusivas e de justiça social?

Bruno Coelho: Do ponto de vista histórico, a democracia e o estabelecimento dos direitos da humanidade são decorrência da existência evangelizadora da Igreja que, nos mais diversos contextos, pautou promoção da vida humana em sintonia com o Evangelho, não obstante as contradições inerentes aos processos humanos. O que temos hoje como direitos cidadãos, defesa da vida, proteção dos mais empobrecidos e resguardo dos vulneráveis socialmente é fruto de hercúleo processo de construção histórica em que a Igreja – entendida como formada por clérigos e leigos – foi protagonista.

Há patente contradição entre a extrema direita e os Evangelhos e Igreja; contradição essencial. Enquanto a Igreja, norteada pela obediência aos Evangelhos, legou à contemporaneidade sociedades democráticas e de direito, evidenciando o compromisso pessoal e de Estado para com os menos favorecidos socialmente, a extrema direita, por viés totalitário/ditatorial propõe um Estado inflexível e intolerante, voltado apenas para seus pares. Logo, a extrema direita não tolera o diferente e por não fomentar políticas públicas democráticas, não leva em consideração a promoção da justiça social e pautas inclusivas.

Para não deixar esta distinção apenas no campo da generalidade argumentativa, eis o seguinte. É preciso levar em consideração que atualmente a extrema direita tem um discurso uniformizado e está estruturalmente integrada mundialmente. Evidentemente, há peculiaridades próprias de cada país e cultura, mas, grosso modo, ela possui um discurso único e comum mundo afora. Justamente por isso, decisões políticas enviesadas por esta ideologia acabam por afetar negativamente nos mais variados países. Por exemplo, com a eleição de Donald Trump para seu segundo mandato presidencial nos Estados Unidos, uma importante decisão afetou a promoção da justiça social em nível mundial. Trata-se do fechamento da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). De imediato as consequências foram desastrosas para vários projetos em escala mundial: ajuda a escolas para meninas no Afeganistão, fornecimento de medicamentos para cerca de 20 milhões pacientes com HIV no continente africano, custeio de professores em Uganda, clínicas de saúde materna e planejamento familiar no Malawi, assistência alimentar para refugiados em Bangladesh; o Brasil era o décimo terceiro país que mais se beneficiava com a Usaid para manter projetos essenciais na promoção da justiça social.

ITESP: Na sua avaliação, que riscos corremos quando símbolos religiosos, como a cruz ou a própria imagem de Jesus, são usados para legitimar discursos autoritários, xenófobos ou antidemocráticos em nome de uma “fé verdadeira”?

Bruno Coelho: Penso que seja inevitável que símbolos caros e significativos para as sociedades sejam apropriados politicamente. Apenas para citar um exemplo na transversalidade histórica. Conta-se para o contexto da Igreja Antiga que o Imperador Constantino (governou de 306-337), na véspera de sua batalha decisiva contra Maxêncio, a emblemática batalha na Ponte Mílvia (28 de outubro de 312), sobre o rio Tibre, havia sonhado com a cruz de Cristo com uma inscrição in hoc signo vinces (com este símbolo vencerás). O Imperador ainda pagão, adotou o símbolo da cruz como estandarte de suas legiões e mandou gravar o mesmo símbolo nos escudos das tropas. Com a consequente vitória, o Imperador se converteu ao Cristianismo e, com isso implementou o final das perseguições aos cristãos com a tolerância da nova fé entre as religiões existentes no Império. Pois bem, passados muitos séculos desde a apropriação do símbolo da cruz pela política imperial romana, no Brasil Colônia, em vias de proclamar a independência, o símbolo constantiniano foi apropriado e ressignificado. Trata-se da pintura do teto do átrio da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, Minas Gerais. A pintura, datada de 1822, traz uma figura extraordinária, sobre uma nuvem, apresentando a um homem preto, ajoelhado e trajado com um hábito religioso, o rosário; no céu, unindo a figura extraordinária e orante, há a inscrição inhoc signo vinces. Eis uma clara apropriação de um símbolo do passado que fazia sentido para o presente. Tal apropriação não está circunscrita apenas ao campo religioso, mas, tem implicações sociopolíticas. O rosário é apresentado como sinal de vitória: no sentido religioso isto fica evidente. Entretanto, o aspecto sociopolítico é o seguinte: o rosário é também a Irmandade dos Homens Pretos, detentora da igreja, que foi importantíssima para os muitos processos de alforria de escravos daquela região das minas. Ou seja, o então escravo poderia encontrar liberdade junto à Irmandade.

Os dois exemplos históricos que trouxe acima demonstram que os símbolos religiosos são também apropriáveis e até apropriados para a promoção de boas políticas. Em ambos os casos, a consequência dos usos políticos dos referidos símbolos foi a geração de vida e liberdade, ou seja, estavam em sintonia com os Evangelhos. Creio que seja justamente este o ponto: a apropriação de símbolos religiosos pela política só será positiva se os frutos também o forem. No caso da extrema direita, isto não se aplica, pois, a essência dela é contrária aos frutos dos Evangelho, logo, sempre trarão morte, exclusão, sofrimento e deterioração da religião e da fé cristãs.

ITESP: Considerando sua atuação como professor no ITESP, instituição ligada à formação teológica e pastoral, como a academia pode contribuir para desconstruir leituras distorcidas dos evangelhos e promover uma formação crítica, ética e libertadora da fé cristã?

Bruno Coelho: Os estudos acadêmicos são imensamente necessários para toda e qualquer liderança cristã. É impossível promover uma evangelização fiel à pessoa de Jesus Cristo sem a ciência teológica, pois, há que se ter discernimento eficaz para o labor pastoral em vistas da salvação integral do ser humano.

Como minha área de atuação no ITESP é no ensino da História, irei refletir a partir dessa área do saber. O Brasil viu estupefato a ascensão da extrema direita no Brasil, com sua versão bolsonarista. Após o resultado das eleições, após uma desgastante campanha eleitoral em 2017, o Brasil passou a se perguntar o que era aquilo! Mundo afora países viram a política ser tomada de assalto por esta ideologia política horrenda. E passamos a nos perguntar de onde teria vindo tudo isso? Ora, a extrema direita sempre esteve presente no mundo, não foi derrotada totalmente na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, creio que os pensadores e governos se contentaram com vitória contra os fascismos em solo alemão e italiano. Digo isso porque, por exemplo, enquanto os americanos combatiam os nazistas na Europa e, após a vitória, se colocaram como o modelo mundial da liberdade e da democracia, em seu território haviam as leis de segregação racial; mesmo no Brasil, um país que durante o século XX se dizia democrático e acolhedor, os negros continuaram sendo tratados como pessoas de segunda classe.

Enfim, creio que o saber teológico, amparado pelas outras áreas do saber, desde que seja construído com metodologia científica e honestidade intelectual, é capaz de colocar por terra as hermenêuticas equivocadas da Bíblia, pois, irá demonstrar a carga ideológica incompatível com o espírito evangélico que grupos políticos e religiosos tenham se apropriado e difundido.

ITESP: Professor, o nacionalismo excludente e o militarismo são frequentemente exaltados por setores da extrema direita como formas de proteger a “identidade cristã” da nação. Como essa visão se distancia da proposta universal e pacífica do Reino de Deus anunciada por Jesus?

Bruno Coelho: O discurso da extrema direita é totalitário, portanto, tende a promover regimes ditatoriais. Nas ditaduras, a população perde os direitos adquiridos e apenas o ditador e seus asseclas gozam de direitos e privilégios. Portanto, o discurso nacionalista da extrema direita não implica o todo da nação, mas, apenas a parte da população que concorda e adere aos seus pressupostos.

A questão do militarismo é uma particularidade da extrema direita brasileira. Penso que esse apelo para a providência militar como salvadora dos valores da pátria sejam também uma apropriação de nossa história recente. O golpe militar de 1964 teve o mote político de que as Forças Armadas estavam protegendo o Brasil do comunismo. Apesar dos equívocos dessa interpretação popular e simplista, para o contexto histórico fazia sentido, afinal, o mundo era dividido econômica e politicamente entre o bloco capitalista e o bloco socialista. Então, para um país com baixa circulação de informações e pouca escolaridade da população, não era algo sem sentido a narrativa vendida. Justamente pela falta de informações – que durante o regime militar (1964-1985) caiu a níveis irrelevantes –, o grosso da população, majoritariamente rural ou vivendo em pequenas cidades, teve a impressão de que foram anos de paz, ordem e desenvolvimento econômico. Ledo engano, pois, a censura estatal é que não permitia a circulação da real condição do país: tortura, repressão, corrupção, crise econômica, assassinato sistemático de minorias sociais, preferencialmente negros, homossexuais, pensadores divergentes do sistema. De qualquer forma, como tudo isso não era conhecido pela população, há a falsa impressão de que o regime militar construiu um Brasil valoroso, ou seja, parecia que tudo corria bem e estava de acordo com a vontade de Deus. Vem disso a imediata associação dos adultos de hoje sobre militares como garantidores da identidade cristã do Brasil.

Penso que o exposto até aqui já esclareça sua pergunta. Extrema direita e proposta evangélica são incompatíveis e inconciliáveis!

ITESP: Em um contexto onde cresce a intolerância religiosa e o discurso de ódio – inclusive contra cristãos que defendem direitos humanos e justiça social –, como podemos resgatar o verdadeiro espírito do evangelho que prega o amor ao inimigo, o diálogo e o respeito às diferenças?

Bruno Coelho: É preciso ter em mente que somos cristãos vivendo em um mundo não cristão. Guardadas as devidas proporções, os cristãos do presente vivem numa sociedade paganizada, quase como nos primeiros séculos da Igreja. A diferença é que o Evangelho e a Igreja não são novidades, pois, muitos que vivem de forma secularizada já tiveram algum tipo de contato com o Evangelho e não aderiram a ele. Assim, creio que a missão da Igreja é duplamente exigente para os dias presentes: ser lugar teológico para que cada cristão faça sua profunda vivência de Deus e, com isso, seja Igreja de fato, ou seja comunidade de discípulos-missionários de Jesus, que se apropriem autentica e livremente do jeito de ser de Jesus como jeito pessoal de existir; e iluminar um mundo com os valores evangélicos, mesmo, sabem que cada vez menos há acolhida do discurso eclesial na esfera pública.

Seja como for, os cristãos irão resgatar os valores do Evangelho e, consequentemente, sua força para guiar os seres humanos a partir do momento em que ser cristão seja menos discursivo e mais vivencial. Penso que uma frase atribuída a São Francisco de Assis seja apropriada para o momento presente da vida Igreja e também para encerrar esta entrevista: “Pregue a todo tempo, se necessário, use palavras”.

Por: Arison Lopes, Comunicação ITESP.

Imagem: Otto Schubert