Retiros masculinos “Legendários”: fé, masculinidade e os desafios por trás da busca espiritual

Retiros masculinos “Legendários”: fé, masculinidade e os desafios por trás da busca espiritual
Foto: Divulgação | Legendários

Nos altos de montanhas, entre trilhas, orações e desafios físicos, cresce silenciosamente no Brasil o movimento “Legendários”, uma iniciativa que oferece retiros espirituais exclusivos para homens com a proposta de reconectar seus participantes com uma suposta “essência masculina”. Com elementos cristãos e linguagem inspiracional, esses encontros vêm atraindo homens em crise — mas também levantam importantes questões sobre os caminhos que a espiritualidade masculina tem trilhado hoje.

Aparentemente inofensivos, e até mesmo transformadores para alguns participantes, esses retiros revelam muito mais do que um simples reencontro com Deus ou consigo mesmos. Sob a ótica da psicologia, o fenômeno lança luz sobre uma crise de identidade masculina que se agrava nas últimas décadas. Os homens, pressionados a manter um ideal muitas vezes inalcançável de força, controle e invulnerabilidade, buscam nesses espaços uma fuga — ou uma resposta — para os dilemas existenciais e afetivos que carregam.

Além do viés psicológico, há também um recorte econômico: muitos dos encontros cobrados pelo movimento ultrapassam cifras altíssimas, inacessíveis para boa parte da população. Porém, os riscos são latentes. Com discursos que exaltam força, liderança e coragem como os pilares do “homem de verdade”, os encontros podem reforçar um modelo engessado de masculinidade que marginaliza outras formas de ser homem.

O Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP) conversou com o psicólogo Wellerson Silva, especialista em Terapia de Casal e Terapia Sexual. Com ampla experiência no atendimento a adultos — tanto em sessões individuais quanto para casais —, Wellerson também integra a equipe de coordenação do Instituto de Psicologia Médica, em Belo Horizonte (MG).

Confira a entrevista na íntegra:

ITESP: Wellerson, nos últimos anos, movimentos como os “Legendários” têm proposto retiros espirituais masculinos como forma de reconexão com uma suposta “essência do homem”. Do ponto de vista psicológico, o que esse tipo de proposta revela sobre a atual crise de identidade masculina na sociedade contemporânea?

Wellerson: Na contemporaneidade, vivemos imersos em uma realidade estressante, na qual somos constantemente expostos à pressão social de “ter para ser” e de performar algo que, muitas vezes, não corresponde de fato a quem somos. A sociedade impõe um excesso de positividade e cobrança, exigindo uma produtividade constante e gerando, como consequência, culpa quando não se está produzindo e cansaço como resposta do corpo. Essa lógica é analisada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em seu livro A Sociedade do Cansaço.

Nesse contexto, observa-se uma crescente individualização da culpa: o fracasso depressivo é repudiado, enquanto o mérito é exaltado de maneira quase maníaca. Assim, o sujeito se sente impelido a doar sempre um pouco mais de si mesmo, como se nunca fosse suficiente. A responsabilidade recai inteiramente sobre cada indivíduo, que deve se tornar gestor de sua própria existência social, arcando tanto com seus sucessos quanto com seus fracassos. Essa dinâmica é abordada por Vincent de Gaulejac em seu artigo Gestão como Doença Social: Ideologia, Poder Gerencialista e Fragmentação Social, no qual analisa os impactos dessa lógica na subjetividade humana.

O mal-estar contemporâneo pode ser compreendido como um desconforto crônico, um estado de ausência de prazer inerente à constituição do psiquismo humano. Esse mal-estar impulsiona o sujeito a buscar alívio e, dentro das possibilidades, alcançar momentos de felicidade.

Dentro desse cenário surgem propostas, dentre elas, os retiros espirituais masculinos promovidos pelos Legendários, que, de certa forma, oferecem uma possível resposta à crise de identidade masculina atual. Esses encontros refletem uma busca por reconexão com uma suposta “essência do homem”, tentando resgatar valores considerados essenciais para a ideia de masculinidade defendida pelos organizadores e pelo público-alvo ao qual os encontros se destinam. Do ponto de vista psicológico, essa tendência pode ser compreendida como uma tentativa de resposta ao mal-estar contemporâneo e à crise de identidade masculina que se intensificou nas últimas décadas.

No artigo “A Crise da Masculinidade: Uma Crítica à Identidade de Gênero e à Literatura Masculinista”, Sergio Gomes da Silva aponta que a crise da masculinidade contemporânea pode ser analisada a partir de dois aspectos principais:

  • O esforço para preservar um modelo de masculinidade dominante, ao mesmo tempo em que se busca incorporar elementos de pluralidade, alternando entre valores tradicionais e interpretações contemporâneas da masculinidade.
  • A dificuldade de manter essa estrutura hegemônica devido à diversidade de vivências e expressões masculinas que desafiam um único modelo identitário.

Historicamente, o modelo hegemônico de masculinidade esteve associado a valores como força, virilidade e ao papel de provedor da família. Entretanto, esse paradigma tem sido desafiado por uma série de mudanças sociais, culturais e econômicas, incluindo debates sobre igualdade de gênero, novas dinâmicas familiares e profissionais, e a desconstrução de padrões rígidos de identidade masculina.

Diante desse cenário, os homens são confrontados com a necessidade de reformular seu papel na sociedade, o que pode gerar tanto resistência quanto abertura para novas possibilidades de existência e expressão.

ITESP: Muitos desses retiros exigem um investimento financeiro elevado, o que os torna inacessíveis para grande parte da população. Como você avalia o impacto da elitização do cuidado emocional e espiritual na saúde mental dos homens das classes populares?

Wellerson: Diante da crise masculina e do mal-estar contemporâneo, as promessas de transformação pessoal, conjugal e familiar podem parecer extremamente atraentes para homens angustiados que veem nesses retiros uma solução para seus dilemas. Essa expectativa se intensifica ainda mais com a promessa de uma mudança rápida, quase milagrosa, decorrente da participação nesses encontros, que geralmente ocorrem em um fim de semana. No entanto, o alto custo financeiro de muitos desses eventos pode aprofundar desigualdades, tornando o acesso restrito às classes mais privilegiadas e excluindo justamente aqueles que mais necessitam de suporte e amparo emocional e espiritual.

Em uma perspectiva psicossocial, podemos entender como um sintoma de nossos tempos, a busca pela “pedra filosofal”, na qual existe uma predileção por resultados rápidos, imediatos, ao invés de resultados eficazes e de qualidade, sem necessariamente passar pelo processo, que muitas vezes é mais penoso e que envolve o desenvolvimento da paciência, perseverança e de tolerância a frustração, já que implica em um percurso de médio longo prazo.

Outro ponto de preocupação surge quando, em alguns espaços religiosos, ou seja, não são todos, ocorre uma hierarquização que eleva aqueles que participaram dos retiros a um grupo diferenciado e seleto, em contraste com aqueles que não participaram. Isso pode gerar uma divisão dentro das congregações, promovendo separação em vez de comunhão ao criar uma distinção entre “os legendários” e “os outros”.

ITESP: Esses grupos frequentemente apelam para discursos de força, liderança e coragem como atributos essenciais do “homem de verdade”. Quais os riscos psicológicos e sociais de reforçar um modelo engessado de masculinidade sob o pretexto de desenvolvimento pessoal e espiritual?

Wellerson: Há um problema na associação entre a participação nesses retiros e a ideia de se tornar um “homem de verdade”. Essa premissa pode sugerir que aqueles que frequentam esses encontros seriam “mais homens” do que aqueles que não participaram, reforçando uma visão excludente em relação a quem não teve essa experiência. Além de promover a ideia de que existe o jeito “certo” de ser homem, deixando de lado outras formas de expressão que abarque outros valores também importantes para o exercício de uma masculinidade saudável.

Atributos como força, liderança e coragem são desejáveis em diversos contextos nos quais esse homem está inserido e, por si só, não configuram um problema. O ponto de atenção deve estar na rigidez imposta a essas características, dificultando a transição entre diferentes papeis quando necessário.

Quando esses atributos passam a definir exclusivamente o que significa ser homem, observa-se um alinhamento com representações que sustentam a masculinidade hegemônica, como virilidade, distanciamento emocional, agressividade e predisposição a comportamentos de risco no cotidiano. Além disso, emergem figuras simbólicas, como o “cavaleiro medieval”, o “guerreiro” e o “soldado”, reforçando uma identidade masculina baseada na força, na proteção e no domínio sobre a natureza — aspecto frequentemente presente nos retiros realizados em locais isolados e que estão presentes os intempéries da natureza.

Na tentativa de corresponder a esse modelo idealizado de masculinidade, corre-se o risco de:

  • Repressão emocional e aumento do sofrimento psíquico: A valorização excessiva da força e da coragem pode levar à associação da vulnerabilidade e da fraqueza à inferioridade e a traços femininos, dificultando a expressão emocional.
  • Medo da falha, ansiedade e sensação de inadequação:  Homens que não conseguem atingir o padrão esperado podem experimentar intensa pressão social, autocrítica e sobrecarga emocional.
  • Exclusão da cooperação e reforço de hierarquias rígidas: O ideal de liderança baseado exclusivamente na autoridade individual pode criar ambientes de competição e dificultar relações mais colaborativas.
  • Dificuldade na conexão emocional com outros: A imposição desse modelo pode tornar mais difícil para os homens se conectar emocionalmente com amigos, parceiras e familiares, prejudicando o desenvolvimento de relações mais profundas e afetivas.

A perpetuação de um modelo rígido de masculinidade, sob o pretexto de desenvolvimento pessoal e espiritual, pode gerar impactos negativos tanto no bem-estar individual quanto nas dinâmicas sociais. Esse cenário exige uma reflexão crítica sobre a necessidade de modelos mais amplos e complexos, capazes de abarcar mais elementos e expressões de masculinidades.

ITESP: Na sua visão como psicólogo, como podemos promover espaços de escuta e acolhimento para homens que buscam sentido, cura e espiritualidade sem cair em fórmulas conservadoras, excludentes ou que reforcem estigmas de gênero?

Wellerson: Acho importante ter zelo e tato ao falar sobre o movimento, para não incorrer no erro de, ao criticar os Legendários, acabar atacando os participantes que, genuinamente, buscam responder questões importantes e encontrar respostas para dilemas significativos em sua experiência de vida e na vivência de sua masculinidade.

Encontramos uma série de relatos sobre transformações na vida pessoal, conjugal e familiar de alguns participantes, e isso não pode ser ignorado. Uma possível leitura para esse fenômeno é que a experiência de participar pode ter funcionado como um catalisador ou um impulso para uma mudança que já estava em fase inicial, um potencial previamente presente na trajetória de vida do participante. Ou seja, o contexto para a mudança já existia antes da participação no evento.

Há um risco em atribuir essas mudanças a uma única causa, pois isso reforça a ideia de “fórmulas” simplistas. Já se sabe que, quando se trata de comportamento, psique humana e o que acontece entre nós, é essencial adotar uma perspectiva multifatorial e mais complexa.

Talvez, como experiência, por curiosidade, aventura ou senso de pertencimento, faça sentido para quem pode investir em participar do Legendários e, nesse caso, isso é válido. 

Entretanto, ainda que existam testemunhos de vida, o movimento não está isento de críticas e da necessidade de mais espaços onde se possa refletir sobre a masculinidade de forma mais abrangente, complexa e acessível, tanto dentro quanto fora da comunidade de fé. 

Participar deste evento não substitui o acompanhamento psicológico, seja ele individual, conjugal ou familiar, nem o acompanhamento espiritual oferecido pela liderança ou pelos responsáveis por essas áreas dentro das congregações e das comunidades de fé dos participantes.

Existem alguns espaços que incentivam o diálogo aberto, seguro e acolhedor acerca das masculinidades. Perfis como: “Papo de Homem”; os encontros do “Masculinidades Reais” do Instituto de Psicologia Médica;  “Quebrando o Silêncio” e o “Força de Pai”, entre outros, são exemplos de iniciativas que promovem esse debate.

É necessário, portanto, olhar com mais cuidado para esses movimentos. Para além da crítica, há um chamado à construção de espaços de escuta e acolhimento que realmente promovam um cuidado integral do homem, sem fórmulas milagrosas, sem exclusão e sem reforçar estigmas de gênero.

É urgente que as comunidades de fé, os profissionais da saúde mental e a sociedade em geral assumam o desafio de dialogar sobre masculinidades com mais profundidade, responsabilidade e empatia. A crise do homem moderno não se resolve com armaduras ou espadas simbólicas, mas com escuta, afeto, autoconhecimento e, acima de tudo, humanidade.