Um Papa para os invisíveis: Frei Marx fala sobre o conclave e o futuro da Igreja junto aos pobres

Um Papa para os invisíveis: Frei Marx fala sobre o conclave e o futuro da Igreja junto aos pobres
Mandel Ngan - 24.abr.2025/AFP

Por ocasião do conclave de 2025, que elegerá o novo pontífice após o falecimento do Papa Francisco, Frei Marx Rodrigues dos Reis, franciscano e referência na missão com pessoas em situação de rua, fala sobre os desafios que aguardam a Igreja e o papel essencial do Papa para um mundo em crise.

O conclave de 2025 acontece em um momento delicado e decisivo. A Igreja se despede de um líder emblemático, o Papa Francisco, cuja marca foi a proximidade com os pobres, os migrantes e os descartados da sociedade. Para Frei Marx, que atua cotidianamente ao lado das populações mais vulnerabilizadas, especialmente irmãos e irmãs em situação de rua, a escolha do novo Papa pode representar mais do que uma mudança de liderança: pode ser o sopro de esperança de que o mundo tanto precisa.

Em sua visão, a missão do próximo pontífice deve manter esse espírito, sendo capaz de olhar para as feridas abertas do mundo – fome, guerra, crise climática – e responder com ações concretas, não apenas com palavras.

Ao ser questionado sobre o impacto que um novo Papa pode ter para as pessoas em situação de rua, Frei Marx é enfático: “Essa população vive a ferida de um mundo doente”. Ele lembra que ali se concentram problemas profundos da nossa sociedade: saúde mental negligenciada, dependência química, violência familiar, abandono estatal e o estigma do encarceramento. “Quando olhamos para as ruas, não vemos apenas pobreza. Vemos o reflexo de um sistema que colapsa.”

Acompanhe a entrevista na íntegra:

ITESP: Pe. Marx, o senhor que caminha ao lado das populações mais vulnerabilizadas, como enxerga a importância do conclave de 2025 para uma Igreja que se vê cada vez mais desafiada a ser presença profética e solidária no mundo?

Frei Marx: O conclave é um período de muita oração — seja pela despedida do antigo Papa, seja pelo desafio de conduzir uma liderança em uma estrutura global. Neste ano, porém, enfrentamos a perda de uma figura emblemática: o Papa Francisco. Essa figura não representou apenas uma forma de compreender o coração dos que sofrem no interior da Igreja; ele foi também aquele que soube denunciar as estruturas geradoras de desigualdade, de morte e de desesperança. Sabe, é fácil olhar para Lampedusa e entender que ali há sofrimento. Difícil é cobrar os Estados europeus. Difícil é dizer que, em nome da caridade de Cristo, é necessário pôr fim à subordinação que leva pessoas ao alto-mar. Qual é a minha expectativa? Que sejamos proféticos em um tempo de guerra, de desmatamento, de conservadorismo e, ao mesmo tempo, de pluralidade. Quando a dignidade humana, nos balcões da economia, é negociada ao custo da vida dos vulneráveis, talvez um líder que represente esse amor marginalizado — morto e pendurado na cruz — possa ser justamente quem traga o amor como pauta de transformação neste mundo. Assim, a fé se concretiza na prática, e a carne da Igreja se torna maior do que os documentos. Quem sabe o novo Papa não possa nos oferecer um suspiro de esperança nesses tempos sombrios.

ITESP: Na sua experiência pastoral e social, sobretudo junto aos irmãos e irmãs em situação de rua, qual o impacto que a escolha de um novo papa pode representar para a missão da Igreja na promoção da justiça social, da dignidade humana e dos direitos fundamentais?

Frei Marx: Bem, entre os chamados “papeáveis” neste momento, surgem diversas pessoas e perfis. Alguns são nomes que organizariam mais a estrutura dogmática, religiosa e até litúrgica. Outros querem levar adiante o espírito do próprio Papa Francisco: uma Igreja conciliadora, que dialoga com os diferentes lados, que tem um carisma forte, uma voz ponderada diante dos problemas sociais e ambientais. Alguém que não hesita em afirmar que a paz é um projeto cristão. Mas também é verdade que existem outros temas que ocupam a mente dessas pessoas — como, por exemplo, as questões ligadas às identidades: a comunidade LGBT+, a situação do segundo matrimônio, ou ainda pessoas que não se sentem acolhidas pela Igreja. Isso tudo faz parte de um processo. A pergunta é: num mundo como o de hoje, será possível alguém dar conta de tudo isso? Talvez não. Talvez não seja possível abarcar todos esses desafios em uma única figura, em uma única missão. É preciso reconhecer que parte desse caminho será feito, e que isso já é significativo. Eu espero, profundamente, que esse Papa — além de ser uma pessoa carismática, que nos revele no olhar um pouco do amor de Deus — tenha também uma voz profética, como a de João Batista, capaz de dizer que o machado já está posto à raiz, e que é preciso uma conversão profunda. Nesse lugar, seria necessário alguém capaz de discutir os processos geradores de desigualdade e morte, alguém que não aceite a guerra como solução, mas que promova o diálogo que leve a um fim real dos conflitos. Não apenas uma voz que ecoa, mas alguém que enfrente de fato os desafios. Alguém que tenha coragem de expor que o capitalismo traz, em seu processo, contradições intrínsecas — gerando não apenas desigualdade dentro dos países, mas também nas relações entre eles, especialmente com os países do Sul Global. Uma pessoa que compreenda que a teologia precisa ter um olhar amplo, atento às periferias. Esse seria um sonho. Quem sabe o Espírito Santo nos conduza por esses passos.

ITESP: Que tipo de pontífice o senhor acredita que a Igreja e o mundo mais precisam hoje — especialmente diante de um cenário global marcado por desigualdade, fome, guerras e exclusão? Que sinais de esperança podem vir desse novo tempo que se anuncia?

Frei Marx: Ao meu ver, a população em situação de rua vive a ferida de um mundo doente. Quando a gente estuda um pouco os dados sobre essas pessoas, percebe que aquilo que muitos imaginam como problema pontual se torna, ali, uma ferida exposta. Por exemplo: saúde mental, uso abusivo de substâncias entorpecentes, violências desmedidas dentro de casa ou até mesmo na relação entre o Estado e o indivíduo. Há também a enorme dificuldade de retorno ao convívio familiar após o sistema prisional. Tudo isso demonstra o quanto esse modelo de vida está frágil, capenga. Vivemos num mundo onde, inclusive, as pessoas passam fome. E é preciso pensar que temos condições — e de fato produzimos — alimentos suficientes para mais de um planeta, e mesmo assim muitos ainda passam fome. A pergunta que fica é: por que, então, as pessoas estão nas ruas? A resposta talvez seja essa: porque estamos doentes. A expectativa trazida por um Papa como Francisco nos coloca em outro lugar, ao afirmar que prefere uma Igreja enlameada a uma Igreja trancafiada. É preciso compreender que devemos, sim, nos misturar à lama do mundo, às dificuldades de um tempo de decadência, de quedas profundas. Este é o lugar onde entendemos que o mundo está mancando, que as pessoas estão sendo empurradas à situação de rua. A voz do Papa Francisco no presente já é muito importante, mas a voz do Papa no futuro será igualmente essencial. Há de se pensar que, em dez anos, enfrentaremos problemas seríssimos — econômicos e climáticos — em escala global. As consequências se agravam, e encontrar soluções se torna cada vez mais difícil. Uma pessoa como o Papa pode ser justamente a oportunidade de antecipar, no presente, o que tanto nos falta. Por isso, acreditar nesse caminho é acreditar em um tempo novo.

Em meio a esse cenário, ele acredita que a Igreja tem um papel fundamental a cumprir – e o Papa, como seu rosto mais visível, pode ser uma força mobilizadora. É preciso um Papa que não tema se aproximar das dores do mundo, que assuma os conflitos com coragem e enfrente, com lucidez e fé, as causas estruturais que geram miséria e exclusão.

Embora nenhum líder sozinho consiga resolver todos os problemas, é possível apontar caminhos, promover encontros e inspirar mudanças reais. A escolha do novo pontífice não diz respeito apenas aos rumos da Igreja, mas ao modo como a humanidade, especialmente os que mais sofrem, serão vistos e tratados nos próximos anos. O conclave, assim, é também um espelho de quem queremos ser enquanto sociedade: indiferente ou solidária, distante ou comprometida com a dignidade de todos.

Por: Arison Lopes, Comunicação ITESP.

Foto: Mandel Ngan – 24.abr.2025/AFP