Riso e responsabilidade: Prof. Dr. Mário Dias reflete no ITESP sobre os limites éticos do humor

O Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP) recebeu o Prof. Dr. Mário José Dias, doutor em Memória Social pela UNIRIO e docente no UNISAL, para uma entrevista sobre um tema cada vez mais urgente: os limites éticos do humor na sociedade contemporânea. A partir da filosofia de Hannah Arendt e de casos recentes da cultura midiática brasileira o professor lançou luz sobre como o riso pode se transformar em um instrumento de exclusão, violência simbólica e naturalização da injustiça.
Em tempos de discursos polarizados e crescente banalização de estigmas, Dr. Mário nos provoca a refletir sobre a responsabilidade individual por trás daquilo que aparentemente é apenas uma piada. Segundo ele, o riso, embora frequentemente associado à leveza, carrega uma ambiguidade ética que pode revelar tanto a liberdade quanto a banalidade do mal, conceito central em Arendt para descrever atos violentos cometidos sob aparente normalidade e ausência de reflexão crítica.
A entrevista também destacou a responsabilidade do público. Rir, compartilhar ou silenciar diante de piadas preconceituosas é, segundo o professor, uma forma de validar comportamentos que enfraquecem as lutas por justiça e dignidade. “A ausência de julgamento moral não é neutra. Ela colabora com o esvaziamento do espaço público e desmobiliza a empatia”, alertou. Acompanhe a entrevista na integra:
ITESP: Prof. Mário Dias, a partir do conceito de “banalidade do mal” proposto por Hannah Arendt, como podemos compreender o papel do humor que naturaliza violências simbólicas e reforça estigmas sociais? O caso do humorista Léo Lins, acusado de utilizar piadas que atingem populações vulneráveis, parece ilustrar como o riso pode se tornar um mecanismo de normalização do mal. O gesto jocoso pode esconder uma aceitação silenciosa da desumanização?
Mário Dias: O riso, frequentemente associado à leveza e ao entretenimento, pode também carregar uma dimensão trágica e profundamente ética. A partir da filosofia de Hannah Arendt e Friedrich Nietzsche, é possível compreender o riso não apenas como expressão de alegria, mas como um fenômeno ambíguo, capaz de revelar tanto a liberdade quanto a banalidade do mal. O caso do humorista Léo Lins, condenado por piadas discriminatórias, ilustra como o riso pode se tornar instrumento de exclusão e violência simbólica.
Para Arendt, a ação humana é marcada pela imprevisibilidade e pela fragilidade. Em sua obra “A condição humana”, ela afirma que “a ação não tem fim” e que seus efeitos se estendem para além da intenção do agente. Essa dimensão trágica da ação exige responsabilidade e julgamento moral. Quando o riso é usado para ridicularizar grupos vulneráveis, como no caso de Léo Lins, ele deixa de ser apenas cômico e se insere no campo da ação política e ética.
O humor de Léo Lins, ao ridicularizar pessoas com deficiência, negros e nordestinos, exemplifica o que Arendt chamou de “banalidade do mal”: a ausência de pensamento crítico diante das consequências dos próprios atos. O riso, nesse contexto, não é libertador, mas cúmplice de estruturas de opressão. A Justiça reconheceu isso ao condená-lo por discurso discriminatório. É importante sempre reforçar a máxima kantiana (também conhecida como “regra de ouro”) ao afirmar que o que não queremos para nós, não devemos aplicar aos outros. Essa máxima é reforçada por Arendt quando enfatiza que ao perdermos a capacidade de pensar, perdemos o nosso juízo moral.
ITESP: Qual é o limite ético entre a liberdade de expressão e a responsabilidade pública, quando o discurso humorístico atinge coletivos historicamente oprimidos? Na perspectiva arendtiana, a responsabilidade individual não se dilui no coletivo. Assim, seria possível afirmar que, mesmo sob a máscara da comédia, há uma decisão ética consciente de colaborar com estruturas de exclusão social?
Mário Dias: Na perspectiva de Hannah Arendt, a responsabilidade individual é um aspecto crucial e não se dilui no coletivo. Ela enfatiza a importância do julgamento e do pensamento crítico como antídotos contra a obediência cega e a indiferença. Em sua obra “A condição humana”, Arendt afirma que a “ação não tem fim” e que seus efeitos se estendem para além da intenção de quem o aplica. Isso significa que, mesmo sob a máscara da comédia, há uma decisão ética consciente de colaborar com estruturas de exclusão social, pois as ações e suas consequências vão além das intenções iniciais. Reforça-se a colocação anterior de que o riso, quando usado para ridicularizar grupos vulneráveis, ele deixa de ser apenas cômico e se insere no campo da ação política e ética.
Não se pode confundir “liberdade de expressão” com desrespeito ao outro. Numa perspectiva arendtiana é preciso “amar o mundo”, o que significa reforçar os princípios da pluralidade, que não é sinônimo de uniformidade, de anulação das individualidades, mas do respeito às diferenças e, consequentemente, da soma das singularidades. Qualquer ação que menospreza o outro é contrária a essa pluralidade presente no mundo.
ITESP: Como o riso que humilha os mais fracos pode contribuir para o enfraquecimento das lutas por justiça e dignidade? Pensando na noção arendtiana de ação política e construção do comum, até que ponto o humor pode esvaziar o espaço público e desmobilizar a empatia, tornando as lutas sociais um objeto de escárnio em vez de engajamento?
Mário Dias: O riso, quando usado para ridicularizar grupos vulneráveis, pode ter consequências que vão além do momento cômico, afetando a construção do espaço público e a empatia social. Quando o humor é utilizado para humilhar os mais fracos, ele pode contribuir para o enfraquecimento das lutas por justiça e dignidade ao normalizar a exclusão e a desumanização. Isso pode esvaziar o espaço público, pois transforma questões sérias em objetos de escárnio, desmobilizando a empatia e o engajamento social.
Arendt também fala da importância do julgamento e do pensamento crítico como antídotos contra a obediência cega e a indiferença. Quando o público ri ou permanece em silêncio diante de piadas preconceituosas, ele legitima esse tipo de discurso, participando de um processo de normalização do mal, ainda que de forma disfarçada e cômica.
Portanto, na perspectiva arendtiana, o humor que humilha os mais fracos não apenas enfraquece as lutas por justiça e dignidade, mas também compromete a construção do comum, esvaziando o espaço público e desmobilizando a empatia.
O humorista que faz piadas às custas de grupos vulneráveis pode não perceber o impacto de suas palavras, mas ao fazer isso, ele contribui para a perpetuação de estigmas e a desumanização desses grupos. Esse tipo de humor não é apenas uma questão de mau gosto; ele reflete uma falta de reflexão crítica sobre as consequências de suas ações.
No caso do humorista Léo Lins, que foi condenado por piadas discriminatórias, podemos ver um exemplo claro da banalidade do mal. Ao ridicularizar pessoas com deficiência, negros e nordestinos, ele exemplifica a ausência de pensamento crítico diante das consequências de seus atos. O riso, nesse contexto, não é libertador, mas cúmplice de estruturas de opressão.
ITESP: Hannah Arendt fala da importância do julgamento e do pensamento como antídotos contra a obediência cega e a indiferença. Que papel o público tem ao rir ou permanecer em silêncio diante de piadas preconceituosas? Ao legitimar esse tipo de discurso sob o pretexto do “é só piada”, não estaríamos todos participando de um processo de normalização do mal, ainda que em sua forma mais disfarçada e cômica?
Mário Dias: Hannah Arendt, ao desenvolver o conceito de “banalidade do mal”, destacou como ações aparentemente triviais podem ter consequências devastadoras quando não são acompanhadas de reflexão crítica. No contexto do humor, isso significa que piadas preconceituosas, mesmo quando vistas como inofensivas, podem contribuir para a perpetuação de estigmas e a desumanização de grupos vulneráveis.
Quando o público ri ou permanece em silêncio diante de piadas preconceituosas, ele está, de certa forma, validando e normalizando esse tipo de discurso. Arendt argumenta que a ausência de pensamento crítico e julgamento é o que permite que o mal se torne banal. Em suas palavras: “O mal radical surge quando a banalidade do mal se instala, quando as pessoas deixam de pensar criticamente sobre suas ações e as consequências dessas ações”.
Ao legitimar piadas preconceituosas sob o pretexto do “é só piada”, estamos todos participando de um processo de normalização do mal. Esse riso não é apenas uma expressão de alegria, mas um ato que contribui para a manutenção de estruturas de opressão e exclusão social. A responsabilidade, portanto, não é apenas do humorista, mas também do público que consome e valida esse tipo de conteúdo.
É importante que nós, leitores e frequentadores das redes sociais, tomemos consciência de que ao “curtir”, “compartilhar” ou apenas “visualizar” qualquer conteúdo que não esteja de acordo com os nossos valores e que não contribuem para a valorização do outro, de sua dignidade, estamos, de certa forma, contribuindo para banalizar as ações e aumentar o preconceito, a cultura do ódio…
Toda ação é sempre carregada de intencionalidade e, por isso, precisamos estar atentos e, principalmente, nos posicionarmos diante de qualquer conteúdo que não valorize a vida em comum. Somos seres singulares que necessitamos viver a pluralidade. Esta por sua vez se concretiza quando nos colocamos ao lado da justiça, da ética e dos valores fundamentais presentes em uma sociedade que queira ser reconhecida como defensora dos direitos humanos.
Essa discussão é especialmente relevante no contexto formativo do ITESP, que prepara futuros agentes pastorais e lideranças religiosas comprometidas com o povo de Deus. Formar-se teologicamente hoje não é apenas adquirir conhecimento doutrinário, mas desenvolver um olhar crítico e sensível à dignidade humana, especialmente dos mais vulneráveis. Ao refletir sobre o papel do riso na vida social, os estudantes são convidados a pensar sua atuação pública de maneira ética, responsável e encarnada na realidade das comunidades que servirão.
A fala do Prof. Mário Dias deixa um recado claro: toda ação, inclusive a mais trivial, como o riso, carrega consequências. Para uma sociedade verdadeiramente plural e justa, é preciso coragem para discernir, pensar criticamente e se posicionar diante daquilo que fere a dignidade do outro.
Por: Arison Lopes, Comunicação ITESP.
Imagem: Hieronymus Bosch