A fraternidade e a situação de rua – Como relacionar o trabalho com as pessoas que estão em situação de rua e a defesa de uma ecologia integral?

Vivemos um momento desafiador para o planeta e consequentemente para toda vida que o habita. Mais grave ainda para aqueles que estão em processo de descarte da sociedade. Parece pesada a palavra descarte, mas é o que estamos presenciando nestes últimos anos, em particular nas grandes cidades. O ser humano está misturado com o lixo, naquilo que rejeitamos e enviamos para os aterros sanitários.
O censo de 2022, produzido pelo município de São Paulo, constatou que cerca de 31.884 pessoas estão em situação de rua na cidade (São Paulo, 2022). O número é 31% maior do que os números apurados no ano de 2019. Mas, esta pesquisa foi muito questionada por sua metodologia e por não contar outros segmentos de vulnerabilidade próximos da realidade de quem vive em situação de rua. Nos últimos anos o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG), vem acompanhando os registros realizados no cadúnico, ferramenta do Governo Federal para identificar as pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, dentre estas a população que está em situação de rua. Em fevereiro de 2025, estavam nos registros do cadúnico 332.180 pessoas em situação de rua. No estado de São Paulo foram contabilizados 140.543 e na capital, só na cidade de São Paulo, foram 93.355 pessoas que se declararam em situação de rua. É uma realidade que, com certeza, Deus olha e não gosta do que vê. Se trazemos essa realidade para o campo da proposta da Campanha da Fraternidade, Fraternidade e Ecologia Integral com o lema: “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31), nos deparamos com um grande desafio: como pensar a crise do planeta, o “colapso planetário” que para alguns já é impossível de ser revertido? O que dizer de quem está em situação de rua, devido à quantidade crescente e a complexidade dessa realidade que, também, pode estar num ponto em que não há possibilidade de reversão?
Mas, onde há vida, há esperança. Dom Joaquim Mol, bispo Coadjutor da diocese de Santos (SP), numa transmissão sobre a campanha da fraternidade, expressou esse desafio e a possibilidade de mudança de direção. “Já estamos experimentando o prenúncio do fim, nas grandes catástrofes que assolam o nosso país. É preciso urgente conversão ecológica: passar da lógica extrativista, que contempla a Terra como um reservatório infinito de recursos, onde podemos retirar tudo aquilo que quisermos, como quisermos e quando quisermos, para uma lógica do cuidado”.
Se pensarmos assim, também precisamos trazer essa lógica do cuidado para estas pessoas que estão vivendo abaixo da extrema pobreza, sofrendo as mesmas violências que o planeta. Temos que cuidar dessas pessoas se queremos mudar essa realidade da destruição ecológica. Não é possível trabalharmos com a ideia de mudança ou de reversão da política predatória do planeta, sem incluir a mudança na lógica do descarte social que uma grande parcela da sociedade já vem sofrendo no dia a dia.
O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, chama a atenção para a importância de se trabalhar nesta perspectiva de inter-relação. “Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência” (LS 117).
Assim, várias pessoas dedicam sua vida nesta lógica reversa, cuidando daquilo que já parece perdido. A Rede Rua é uma das organizações, dentre tantas, que vem reunindo pessoas que acreditam, e mesmo se não acreditam, não querem cruzar os braços, mas se colocam em ação para contribuir com esse cuidado ecológico humanitário. São várias ações, desde o jornal “O Trecheiro” que procura dar visibilidade a esta realidade e trazer possibilidades de mudança, a casas que recebem as pessoas que estão em situação de rua para um acolhimento digno, banho, guarda de pertences, escuta e encaminhamentos e possíveis saídas desta situação; vivências nas ruas, praças e baixos de viadutos. Uma delas é a “Tenda do Encontro” que acontece nos finais de semana e reúne a população em uma das praças da cidade para um café, momento de mística, bate-papo, lazer, cantoria e confraternização. Nesta perspectiva, procura-se avançar numa metodologia que privilegie a autonomia, o protagonismo e a organização para que se possa acreditar que a vida ainda é possível para o planeta e para as pessoas que estão em situação de rua.
Por Alderon Costa – jornalista e editor do jornal O Trecheiro/Rede Rua
Imagem: Obra de Käthe Kollwitz (1867–1945), domínio público.