Fé servida em cápsulas? Uma análise crítica do fenômeno editorial que mistura espiritualidade e consumo

O livro Café com Deus Pai, do pastor Junior Rostirola, tornou-se o título mais vendido de 2024 na Amazon Brasil, superando obras de ficção, autoajuda e até mesmo os grandes lançamentos do ano. Embora o sucesso editorial impressione, o conteúdo da obra tem despertado reflexões e preocupações entre teólogos, filósofos e estudiosos da religião, que enxergam no fenômeno mais do que uma simples preferência de leitura: trata-se da comercialização de uma experiência devocional adaptada aos moldes da sociedade de consumo.
Trechos que tocam a abundância, prosperidade e individualização ilustram bem a proposta do livro, que sugere ao leitor mensagens diárias com base em versículos bíblicos, acompanhadas de breves reflexões. No entanto, críticos apontam que muitas dessas passagens são retiradas de seus contextos originais, com interpretações superficiais ou enviesadas que se aproximam de uma “teologia coaching” – uma forma de espiritualidade que promete soluções fáceis para dilemas existenciais, muitas vezes confundindo bênçãos com prosperidade material.
Para o professor e filósofo Gustavo Rigueira, o êxito de obras como essa se insere numa lógica mais ampla de mercantilização da fé. “Vivemos numa sociedade de hiperconsumo, onde felicidade, sentido e realização se constroem pelo que se adquire. A fé, neste contexto, torna-se também um produto”, explica ele, mencionando pensadores como Gilles Lipovetsky e Karl Marx, que analisaram o impacto do consumo e do fetichismo da mercadoria nas dinâmicas sociais.
A crítica à obra de Rostirola, portanto, não se restringe ao seu conteúdo, mas à forma como ela é apresentada e consumida. Com um design atrativo, páginas cuidadosamente diagramadas e uma linguagem leve, o livro convida o leitor a começar o dia com uma “dose” de fé, num ritual quase sensorial que remete à pausa para o café – quente, breve, reconfortante. Entretanto, como alerta o professor, esse “café” muitas vezes esfria quando se afasta da essência comunitária e transformadora do Evangelho.
Acompanhe a entrevista com Prof. Gustavo Rigueira, professor na área de História, Filosofia e Sociologia. Especialista em Ensino de Filosofia no Ensino Médio pela UNIFESP.
ITESP: Historicamente, a religiosidade sempre esteve atrelada a práticas comunitárias e a ritos acessíveis a diferentes grupos sociais. No entanto, no contexto atual, observa-se um crescimento da comercialização de produtos religiosos, muitas vezes voltados para públicos com maior poder aquisitivo. Do ponto de vista histórico e sociológico, como podemos compreender essa transformação da fé em um bem de consumo?
Gustavo Rigueira: Segundo o sociólogo Gilles Lipovetsky, vivemos numa sociedade marcada pelo hiperconsumo, onde as relações de felicidade, realização e sentido se configuram dentro do “poder de compra”. Esta dinâmica, individualizada e egocêntrica, podemos dizer que é uma evolução da hiperprodução do sistema capitalista, que ainda no século XIX era entendida por Marx como “fetichismo da mercadoria”, isto é, o produto que adquire mais valor à pessoa que o produziu. A transformação da fé em produto atende a esta demanda, onde o foco não está na pessoa e na sua experiência religiosa – que sempre é abertura à alteridade e à transcendência – mas no consumo do produto que ela adquiriu, o qual é altamente comercializado dentro de estratégias de marketing muito bem orquestradas, pois a finalidade não é a pessoa, e sim o lucro advindo do consumo.
ITESP: O livro Café com Deus Pai propõe uma experiência devocional individual e personalizada, o que reflete uma tendência mais ampla de privatização da experiência religiosa. Em sua visão, essa busca por um relacionamento individual com Deus, mediado por produtos específicos, se conecta com o individualismo característico da modernidade? Como essa mudança afeta a vivência da fé dentro da comunidade?
Gustavo Rigueira: O livro Café com Deus Pai reflete o modelo consumista da sociedade contemporânea. A experiência devocional que tem seu caráter de espetáculo nos stories, mas altamente individualizada por ser feita sem a experiência de comunidade (questão fundante e essencial do cristianismo), enfatiza e corrobora a formação de um indivíduo cada vez mais distante do outro, que cultiva a sua fé a partir de um alimento que lhe convém, não de um alimento construído em comum na vida em comunidade. O café que se toma acaba por ser frio, pois está distante do calor do Deus que se faz Outro na comunidade. O Deus Conosco – Emanuel – tornou-se um apetrecho das mesas de um café de alguém que mora sozinho e faz home office, ou seja, totalmente distante da comunidade.
ITESP: Filósofos como Max Weber apontaram a relação entre religião e capitalismo, especialmente no desenvolvimento da ética do trabalho e da acumulação de bens. Considerando essa perspectiva, como podemos interpretar a existência de um mercado voltado para a experiência religiosa? A comercialização de conteúdos espirituais pode ser vista como uma consequência natural da lógica capitalista, ou há limites éticos e teológicos que deveriam ser considerados?
Gustavo Rigueira: A teoria de Weber entende a relação entre a doutrina calvinista, que enfatiza a predestinação ao céu mediante os sinais de riqueza na vida terrestre, ao desenvolvimento capitalista do eixo norte, formado por países de maioria protestante, tais como EUA, Suíça, Holanda etc.). O livro Café com Deus Pai é totalmente construído a partir de reflexões que estimulam a relação espiritual à vida material, entendendo a riqueza como benção, a graça como bens, a felicidade como um Deus que está sempre nos dando tudo que precisamos (à medida em que compramos tais produtos). A fé, a santidade, o compromisso e as obras não fazem parte deste conteúdo, são apenas recursos utilizados para entender um deus que se compra na prateleira de uma livraria e se consome numa solitária e fria mesa de café da manhã. A comunidade, evento teológico da revelação divina nas sagradas escrituras, é completamente esquecida. Portanto, entender este conteúdo nos leva a entender desvios teológicos que nos afastam do conteúdo da Fé revelado no Cristo que não prometeu um reino de riquezas, mas de serviço e doação ao outro.
A questão vai além da prática pessoal. O crescente mercado de produtos religiosos – que inclui livros, agendas, objetos de decoração, aplicativos e até cursos online – evidencia uma tendência de elitização do Evangelho, promovendo uma espiritualidade personalizada e, muitas vezes, excludente.
Enquanto isso, o que deveria ser um espaço de aprofundamento bíblico e espiritualidade autêntica corre o risco de se tornar um nicho de consumo, onde a Palavra de Deus é moldada ao gosto do freguês. A ausência de uma exegese bíblica rigorosa – que analise os textos em seu contexto histórico, teológico e literário – abre margem para interpretações que, ao invés de libertar, reforçam uma espiritualidade rasa, voltada para o bem-estar individual e o sucesso pessoal.
O alerta não é contra o uso de livros devocionais – eles podem, sim, ser recursos valiosos quando usados com responsabilidade e espírito crítico. O problema está na substituição da Bíblia por mensagens motivacionais desconectadas do texto sagrado e de sua radical proposta de vida em comunhão, justiça e serviço.
No fundo, a questão que fica é: que tipo de fé queremos construir? Uma fé de cápsulas, que se dissolve em promessas fáceis? Ou uma fé encarnada, que transforma vidas por meio da escuta, da partilha e do compromisso com o outro?
Enquanto o café esfria, a pergunta continua quente.
Por: Arison Lopes, Comunicação ITESP.
Imagem: Xilogravura de 1861 de Gustave Doré, domínio público.